04/06/2023 às 20h26min - Atualizada em 04/06/2023 às 20h26min

'A resposta legalista é garantir o que está disposto em lei, ou seja, fazer cumprir o que está nas legislações, como, por exemplo, a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001 (Reforma Psiquiátrica)'

Gabriel Liberato, psicanalista especialista em Saúde Mental, é o entrevistado desta semana

Psicanalista Gabriel Liberato é o entrevistado do Portal Jurídico neste domingo (4)
O Portal Jurídico, em colaboração especial com o advogado Carlos Eduardo Paiva, entrevista, nesta semana, o psicanalista Gabriel Liberato, graduado em Psicologia pelo Universidade Federal de Campina Grande; mestre em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; especialista em Psicologia Clínica; especialista em Saúde Mental, Psicopatologia e Atenção Psicossocial; docente no curso de Psicologia da Faculdade Católica do Rio Grande do Norte; coordenador do Laboratório de Psicanálise Implicada (LAPSI/FCRN). Confira:

Quais são os principais motivos para o fechamento do Hospital de Custódia de Natal?

O fechamento do Hospital de Custódia de Natal acontece em consonância com a Resolução nº 487, de 15 de fevereiro de 2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prevê o fechamento dos hospitais de custódia em todo o território brasileiro. É importante salientar que não se trata de uma medida unidirecional do Judiciário, seja em relação a Natal ou aos hospitais de custódia, mas se dá no contexto, ainda que tardio, da transformação no modo de assistir e cuidar das pessoas em sofrimento psíquico; ou seja, ir até as últimas consequências na implementação da Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001 (Reforma Psiquiátrica), para pensar a política de saúde mental no Brasil. 

Como a política antimanicomial pode contribuir para a saúde mental dos custodiados?

A resposta mais objetiva, e isso não quer dizer mais simples, é pensarmos a ressocialização. Um dos pilares da luta antimanicomial é o tratamento em liberdade e a autonomia. Estes preceitos estão diretamente relacionados à proposta ética da perspectiva da atenção psicossocial. Com isso, temos uma proposta de tratamento que tem como horizonte a potencialização da vida comunitária e social dos sujeitos. Mas, nesse caso, os pacientes custodiados trazem um ingrediente a mais: como pensar uma proposta terapêutica baseada na autonomia e na socialização quando a condição para o tratamento é a própria privação da comunidade? É um desafio que se coloca e que está para além de questões técnicas da saúde mental, quando há atravessamentos de natureza legislativa e jurídica. 

Qual é a importância de garantir o direito à saúde e à dignidade humana dos internos?

A resposta legalista é garantir o que está disposto em lei, ou seja, fazer cumprir o que está nas legislações, como, por exemplo, a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001 (Reforma Psiquiátrica). Mas, mais do que isso, é preciso se perguntar se queremos promover saúde e cidadania, no sentido da oferta de cuidado e da inserção social, ou se queremos apenas fazer a manutenção do higienismo social. No Brasil não temos prisão perpétua, nem pena de morte; com isso, a aposta do Estado brasileiro é que o interno consiga restabelecer minimamente a vida comunitária e social; ou seja, além do viés punitivista, temos o caráter ressocializador da pena. O modelo de tratamento ofertado pelos hospitais de custódia como está posto favorece a manutenção da institucionalização crônica dos internos, contradizendo a perspectiva psicossocial. Dizer isso não aponta uma resposta fácil para a questão. Não se trata de romantizar a condição de saúde mental dos custodiados, mas perceber o atraso brasileiro em repensar o modelo de tratamento nesses espaços. Para além disso, precisamos aprofundar e intensificar o debate em torno da segurança pública no Brasil, sobretudo se considerarmos as contradições sociais na construção da sociedade brasileira, com todas as desigualdades e negligências sofridas ao longo dos anos. Por isso, ainda que para muitos possa ser difícil ou mesmo absurdo, precisamos discutir o sistema prisional brasileiro para além da repressão.   

Quais serão as alternativas de tratamento para os pacientes que atualmente estão no Hospital de Custódia? Quais são as possíveis alternativas mais humanizadas e efetivas de tratamento que podem ser oferecidas aos pacientes que atualmente estão sob custódia no Rio Grande do Norte?

O Brasil conta com uma robusta rede assistencial para tratar a saúde mental: a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Nela, existem vários serviços e dispositivos para acolher os vários tipos de demandas. Esses dispositivos são organizados em pontos de atenção de acordo com a necessidade e a região. Imagino que a alternativa será encaminhar e distribuir essas pessoas na rede de acordo com cada caso. Dizer isso não torna uma saída fácil, pois a rede já é precarizada e a demanda é maior do que a oferta, independentemente da chegada dos custodiados. Somado a isso, ainda temos o desinvestimento e sucateamento da RAPS nos últimos anos, sobretudo a partir de 2018. Atestar isso não deve ser motivo de recuo. Muito pelo contrário, devemos exigir mais investimento e prioridade na melhoria na política de saúde mental brasileira. 

Quais são as principais críticas em relação aos hospitais psiquiátricos?

Em resumo, as principais críticas são: institucionalização crônica dos pacientes, segregação da família e da comunidade, privação da liberdade, restrição da autonomia, hipermedicalização, violações de direitos humanos, precarização das instalações. Há ainda denúncias de violência e maus-tratos. É preciso entender que as críticas não são exatamente ao dispositivo hospital psiquiátrico, mas a todo um modelo de assistência que podemos chamar de lógica manicomial. Um exemplo disso é pensar o script da maioria das Comunidades Terapêuticas no Brasil, que, apesar de não ter a mesma estrutura dos hospitais psiquiátricos, obedecem à mesma lógica de funcionamento. Certamente, os hospitais terminam sendo o principal alvo das críticas por seu lugar de protagonismo nessa lógica segregativa do paradigma manicomial. O que está em jogo não é somente o fechamento de hospitais de custódia, mas o questionamento da manutenção dessa estrutura hospitalar de internação enquanto sinônimo de saúde mental. Essa discussão não é recente. Em 1989, o deputado Paulo Delgado apresentou a primeira tentativa de projeto de lei para a Reforma Psiquiátrica. Passaram-se 12 anos até 2001 para finalmente o texto ser aprovado, ainda que com alterações do texto original. Esse período de 12 anos foi muita quebra de braço entre luta antimanicomial e o lobby dos hospitais psiquiátricos. O que está acontecendo é o novo capítulo da velha resistência em repensar não só os dispositivos de assistência à saúde mental, mas o próprio entendimento do que é saúde mental.   

Como as políticas públicas podem prevenir novas internações na área de saúde mental?

A saúde mental não é uma conta exata e domínio exclusivo do campo Psi. Carecemos de um agente etiológico universal e preciso. Isso dificulta pensar uma lógica de prevenção em massa, homogênea e inequívoca. Inclusive por isso trabalha-se no Brasil com a perspectiva “psicossocial” em detrimento do “mental”. O esforço é pensar a promoção de saúde mental de modo multifatorial e multidisciplinar, ressaltando sempre a importância do laço social na sua composição. Dito isso, podemos pensar que a resposta já está implícita na pergunta: prevenção em saúde mental se faz com políticas públicas. Aqui me refiro à política pública enquanto garantia de direitos, ou seja, um Estado que cumpre aquilo que se propõe a fazer.  Pode parecer utópico, mas pensemos um país com acesso de qualidade à educação, saúde, habitação, entretenimento, lazer e cultura. Um país menos violento e com a renda mais bem distribuída. Com um sistema de transporte acessível e funcional. Uma estrutura de trabalho e seguridade social eficiente e inclusiva. Temos aí alguns balizadores que ajudam a pensar um horizonte para melhorar a saúde mental em nível macrossocial. Associado a isso, pensemos também o bom funcionamento da RAPS em seus vários pontos de atenção. O fortalecimento e melhoria no investimento no SUS e na Atenção Básica. Para finalizar, é preciso esclarecer o sentido da palavra internação. Aqui estou entendendo internação como metáfora, no sentido de como diminuir a chegada de pessoas nos serviços de saúde mental. Nesse caso, primeiro, internação pode se referir a estar interno a alguma coisa, como alguém que vive em estruturas asilares. Por exemplo, alguém que está interno em hospital psiquiátrico ou em unidades de acolhimento. Nesse caso, internação estaria semanticamente mais próximo a instituições totais no sentido foucaultiano. Diferente disso, existe a internação clínica enquanto protocolo de intervenção. Aqui, a internação adquire valor de tratamento que se funda no campo patológico. Então, haverá casos de emergência psiquiátrica que demandarão internações para estabilização do quadro, e aqui sim será necessário a internação, clinicamente falando. Para isso, temos os leitos psiquiátricos em hospitais gerais ou os próprios leitos dos CAPS 3. Quero dizer com isso que a internação é bem-vinda e necessária no sentido clínico para estabilização de eventuais emergências, ou seja, funcionando em caráter transitório conforme prevê a Lei nº 10.216. 

Como o fechamento do Hospital de Custódia pode impactar a saúde mental dos pacientes que precisam de tratamento e estão na fila de espera?

Partindo do pressuposto que a política de saúde mental brasileira já é insuficiente e precarizada, o que vai acontecer é a inflação desse cenário. Imagino que o fechamento desses hospitais irá provocar a necessidade de alternativas e com isso a possibilidade de mudanças e reformulações na assistência à saúde prisional. Apesar de hoje existir psicólogos e psiquiatras assistindo os apenados, essa assistência acontece basicamente em regime ambulatorial. Assim como hoje temos unidades básicas de saúde exclusivas do sistema prisional, não poderíamos ter um serviço de saúde mental exclusivo do sistema prisional? Seria absurdo pensar um CAPS dentro do presídio? 

Existe alguma preocupação em relação ao aumento de casos de pessoas com transtornos mentais em situação de rua após o fechamento do Hospital de Custódia do RN?

Imagino que há alguma preocupação nesse sentido, quando a rua pode ser um destino para os custodiados. Para isso, teria que avaliar cada caso e os limites jurídicos da pena. Todavia, é importante pensar que política para pessoas em situação de rua ainda é muito incipiente não só no Rio Grande do Norte, mas no Brasil. Em Mossoró, por exemplo, não temos um Centro Pop, que é o serviço de referência dentro da Política Nacional para População em Situação de Rua. A situação análoga é se imaginássemos que não tivesse CAPS na cidade, ou seja, faltasse o serviço de referência para a execução da Política Nacional de Saúde Mental. O que quero sinalizar é que, quando o assunto é a política pública para pessoas em situação de rua, estamos mais do que atrasados. 

A Resolução nº 487/2023, do Conselho Nacional de Justiça, estabelece que os estados devem implantar serviços de atenção integral à saúde mental em substituição aos hospitais psiquiátricos. Como isso pode ser implementado na prática e quais as principais dificuldades que os estados enfrentam nesse processo?

Não só uma rede de atenção integral já existe, como já existem legislações prevendo como ela deve funcionar. O que falta é o devido investimento e qualificação dos serviços e profissionais para que a RAPS funcione efetivamente. Na cidade de Mossoró, por exemplo, não temos um CAPS 3, que dentre as configurações dos CAPS é aquele que tem leitos de internação e é 24 horas. Imagino que não há outro caminho para implementação além da priorização da saúde mental acompanhada do respectivo investimento na política nacional de saúde mental, ou seja, tirar do papel o que está previsto. Muito do que acontece no Brasil é o que chamamos na Psicologia de “inclusão perversa”. Inclusão perversa é quando é ofertado algo, mas isso que é ofertado é insuficiente, tem pela metade, ou seja, no bom português, é outro modo de nomear a precarização, quando os serviços não dão conta da demanda. Assim, a principal dificuldade é de gestão.

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