20/11/2022 às 06h40min - Atualizada em 20/11/2022 às 06h40min

Entrevista: ‘No Brasil, a gente gasta muito para tornar as pessoas piores’

Promotor Romero Marinho avalia sistema carcerário mossoroense e traça perfil da população carcerária local

Promotor Romero Marinho: 'o perfil é de pessoas de baixo estrato social, pobres e negras' (Reprodução YouTube)
O Portal Jurídico conversou com o promotor e professor universitário Romero Marinho, titular da 14ª Promotoria de Justiça da Comarca de Mossoró, com atribuição em Execução Penal.
 
Na entrevista concedida ao programa Portal Jurídico no Rádio, ele versa sobre o cenário do sistema carcerário em Mossoró, aponta perfil de apenados e fala da importância de parcerias na Execução Penal.


Boa leitura.

 
PORTAL JURÍDICO - O que faz um promotor de Justiça na Execução Penal?
ROMERO MARINHO - O Ministério Público trabalha como fiscal da lei. É um processo de execução penal e ele é parte. Ele é parte no sentido de que, ele vai verificar se o preso, a pessoa privada de liberdade ou com restrição de direitos tem um determinado direito ou não tem; se há alguma transgressão dos seus direitos. Por exemplo, uma alimentação, deficiência na estrutura sanitária, fornecimento de bens necessários para ele, assim como a posse de livros religiosos. Recentemente, fizemos a investigação de posses de livros religiosos, que é garantido pela Lei de Execução Penal, no artigo 24 e que estava sendo sonegado. Então, o promotor é um fiscal. Para fazer uma tradução, ele é a mosca na sopa, ele que vai ficar fiscalizando tudo, procurando mal feitos da administração, até da população carcerária e vai procurar responsabilização, vai procurar, também, a transformação daquela situação, em uma situação normal, trazer de novo aos trilhos.
 
PJ - Há quanto tempo o senhor está à frente da Promotoria de Execução Penal em Mossoró?
RM - Eu estou aqui em Mossoró desde 2002 e eu tenho uma história de idas e vindas na Execução, no que pese eu estar na mesma promotoria, porque a atribuição veio e voltou. Então eu fiquei na Execução Penal de 2002 a 2006 e quando foi em 2011 ela voltou definitivamente e estou lá na Execução Penal. E queria só justificar essa minha preferência, que é muito contestada familiarmente, haja vista a periculosidade, é porque, com dezoito anos eu fui estagiário, como acadêmico de Direito, na Penitenciária do Roger, lá na Paraíba. Daí eu ter me afeiçoado à matéria. Conduzi uma especialização para esse assunto, meu mestrado também foi investigar nesse assunto, e então ele se tornou uma parte indispensável da minha carreira profissional e acadêmica e é onde me sinto muito realizado profissionalmente.
 
PJ - Quais foram as grandes mudanças que ocorreram ao longo dos últimos anos no sistema carcerário brasileiro, sobretudo aqui em Mossoró?
RM - Veja bem. Preso não dá voto. Vamos partir desse princípio. Preso não dá voto. Então significa que dentro das prioridades estatais e governamentais, a execução penal é a última. Se fosse possível colocar ainda outra, se colocaria. Então, sempre foram situações de sucateamento. Lá nos anos 2000 até 2016, no governo Robinson Faria, era só a ladeira descendo, só depreciação. E as pessoas parece que vibram com essa situação porque dizem: ‘não vamos botar hotel para preso. Eles mataram, eles roubaram, eles estupraram, tem que receber isso mesmo’. Mas as pessoas não sabem é que aqueles presos vão retornar para a sociedade e podem retornar muito mais brutalizados.

PJ - E qual o resultado prático dessa falta de investimento?
RM - Resultado é que as organizações criminosas, as facções criminosas são resultado de uma solidariedade entre os presos, que se firmaram diante dessa situação deprimente e que se organizaram e hoje é o fator, sem dúvida nenhuma, de maior abalo da segurança pública brasileira. Você não vê um homicídio, um tráfico de droga fechar uma cidade, mas as organizações criminosas, basta uma eleição de um deputado que eles não concordam, que eles fecham a cidade. Então, a gente tem que pensar que toda ação tem uma reação. Mas, quando houve aquela rebelião, onde 26 pessoas foram decapitadas em Alcaçuz, parece que houve um estalo, foi um momento ali, em que o governo Robinson Faria abre um concurso para 500 policiais penais e trazem, não mais policiais militares para junto das direções, secretarias, mas os próprios policiais penais e trouxe o policial penal Mauro Albuquerque que assumiu o cargo de secretário. Então, ele trouxe um profissionalismo que até então não era visto.
 
PJ - Significa dizer que o sistema carcerário está mais profissionalizado?
RM - Realmente, desse tempo para cá, a gente vê que houve investimentos na parte estrutural, na parte de contratação de pessoal, com pessoas extremamente qualificadas. Tem estagiários mesmo, tem advogados que fizeram concurso e estão em exercício como policiais penais. Então, nós temos pessoas qualificadíssimas lá. O atual secretário não é policial penal, é da Polícia Federal, mas a adjunta o é. Então, a gente vê realmente que houve uma qualificação, vários programas de educação estão lá dentro, nós temos alguns processos de ressocialização que sofrem do mal da falta de continuidade, mas, mesmo assim, o orçamento é muito limitado. Ainda continua. Por que? Eu me recordo que Vilma de Faria foi uma governadora que cedeu espaço para a construção de um presídio federal no Nordeste, que é aqui em Mossoró. E na campanha seguinte dela era exibida a foto da Penitenciária Federal e a foto dela, que ela era candidata a senadora da República. Então, veja que quando tenta se fazer alguma coisa, o político depende de voto, a verdade seja dita, ele é muito rechaçado pela população e pelos seus pares.
 
PJ - E quanto ao perfil dos encarcerados. Ao longo desse tempo, o senhor identificou alguma mudança?
RM - O encarcerado é etiquetado antes. Tem uma crítica do abolicionismo jurídico que ele diz que existem cifras negras. São crimes que não são detectados nem levados à Justiça e, quando o são, não são responsabilizados. Então, acaba que vazando só, realmente, as pessoas do mais baixo estrato social. Recentemente, nós tivemos dois médicos encarcerados, mas é uma coisa excepcional. Uma coisa muito episódica. O perfil é de pessoas de baixo estrato social, pobres, negras, pessoas sem educação, e que, talvez, o primeiro contato com o Estado seja o estado policial. E muitos deles desenvolvem lá dentro, porque nós temos vários projetos da educação sendo ofertados lá, como o EJA, temos estudantes de ensino superior lá. Então, são pessoas realmente alijadas da sociedade. Não é que a pobreza conduz as pessoas à criminalidade, mas cria um ambiente propício para isso. Pessoas desestruturadas socialmente, analfabetas, na sua maioria, e que não encontraram a oportunidade. E mais: uma marca indelével de todos eles é que são dependentes químicos. Quase todos são dependentes químicos.
 
PJ - O Conselho da Comunidade, presidido pelo advogado Jefferson Freire, é um instrumento que tem um olhar especial aos cidadãos encarcerados. Qual a relação do Ministério Público com esta iniciativa?
RM - O Ministério Público se relaciona com todos os órgãos da execução penal: magistrados, Conselho da Comunidade, diretores. Nós sempre estendemos as mãos para parcerias. Temos uma determinação interna na Corregedoria de não participar do conselho, e de conselhos de modo geral, mas nada impede de formarmos parcerias. Então, nós sempre buscamos essas parcerias. Porque a execução penal tem dois vieses: ela tem a punição, tem que efetivar a punição que está lá na sentença penal condenatória, mas ela também tem que buscar a reinserção daquela pessoa, porque, se não, vai ter o efeito boomerang. Ou seja, aquela pessoa sai da penitenciária e volta. Dificilmente a gente não encontra um reincidente. A reincidência no Brasil é altíssima: 70%.
 
PJ - O que, na sua opinião, provoca essa reincidência tão elevada?
O que fez aquela pessoa cometer crime continua vivo naquela sociedade, naquela desestrutura familiar e social. A falta de qualificação profissional continua viva, fator de freios morais e religiosos, continuará vivo. Então, ele vai passar uma temporada num lugar extremamente deletério, extremamente corrosivo para a personalidade dele e vai retornar. Hoje, no Brasil, a gente gasta muito para tornar as pessoas piores.
 
PJ - Existe alguma métrica na qual vocês possam avaliar a eficácia das políticas de ressocialização?
Esse é um problema crônico no Brasil, que não avalia todas as políticas públicas que são implantadas. É algo muito deficitário. Então, nós não temos essa métrica e a gente não pode aferir, por exemplo, esses programas que padecem no mal da continuidade. Nós temos 600 hectares de terra fértil, com água, vizinho a um dos maiores celeiros de fruticultura do Nordeste, que é Baraúna. Temos ali na mesma terra, a mesma realidade geográfica, e nós temos a Ufersa que tem uma responsabilidade social, que tem conhecimento técnico e nós não exploramos isso. Isso seria um projeto de extensão que poderia ser levado para dentro do sistema prisional, mas não temos. Preferiu-se interditar o semiaberto - que hoje é interditado, colocar tornozeleira, e liberar ao invés de produzir.

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