04/09/2022 às 06h00min - Atualizada em 04/09/2022 às 06h00min

‘Violência contra mulher é cultural. Brasil é muito machista.’

Juíza Fátima Soares, da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar, analisa proteção à mulher no RN

Juíza Fátima Soares destaca avanço no enfrentamento à violência contra mulher (foto: Ednaldo Araújo)
Por Sandra Monteiro 
 
O PORTAL JURÍDICO conversou, na entrevista dessa semana, com a juíza Fátima Soares, responsável pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN). Como temas centrais da conversa, estão abordagens relativas à campanha Agosto Lilás – que combate a violência contra a mulher e o número elevado de medidas protetivas concedidas, diariamente, pelo Judiciário no Rio Grande do Norte.
 
A magistrada tratou, ainda, das dificuldades na interiorização de políticas públicas do Judiciário no âmbito da proteção feminina no Estado, a exemplo da “Sala Lilás” e da carência de Varas Especializadas nas comarcas de Caicó e Pau dos Ferros, além da necessidade de criação de mais uma Vara Especializada na Comarca de Mossoró.
 
Boa leitura.
 

PORTAL JURÍDICO – A senhora coordena uma área que lida diretamente com mulheres em situação de vulnerabilidade ante a violência sofrida. Poderia nos contar mais a respeito do trabalho desenvolvido pela Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar?

FÁTIMA SOARES – Entre outras atribuições, temos as seguintes: garantir o aprimoramento da estrutura do Judiciário na política de enfrentamento da violência contra as mulheres, auxiliar na formação continuada e especializada dos magistrados e servidores nessa matéria e recepcionar, no âmbito de cada comarca, dados, reclamações e sugestões referentes aos serviços de atendimento à mulher vítima de violência doméstica e familiar, promovendo encaminhamentos e divulgações pertinentes, e cumprir as recomendações do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) sobre a melhoria da prestação jurisdicional destinada às mulheres. 
 
PJ – Nessa semana, foi encerrada o Agosto Lilás, campanha anual de combate à violência contra a mulher, e nos chamou a atenção um número divulgado pela plataforma Protege, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, que aponta a concessão de oito medidas protetivas ao dia, no estado. Como a senhora avalia esse dado?
 
FS – Com relação ao acréscimo na concessão de medidas protetivas, é certo afirmar que tal situação é um reflexo do aumento de violência doméstica, uma vez que os principais relatos em cada processo são decorrentes de agressões de injúria, ameaça e lesão corporal, quase todos casos que ocorreram dentro de casa. Os motivos são oriundos de perda de emprego, aumento dos problemas financeiros e de saúde, também uso de drogas, ciúmes. Tudo isso acaba gerando desajustes nas relações familiares, ficando os homens cada vez mais agressivos, ocasionando o aumento das violências. Todavia, podemos, igualmente,  considerar ainda como sendo um melhoramento na prestação jurisdicional, que tem sido mais célere, visando a proteção da mulher vítima acima de tudo.

PJ – Alguns especialistas até creditam esse número elevado ao fato de as mulheres estarem mais bem informadas e buscando os seus direitos, mas o número não deveria ser observado pelo viés do aumento desenfreado da violência contra a mulher?
 
FS – Inicialmente, acredito que o referido aumento de casos de violência contra a mulher deriva-se de um fato eminentemente cultural. O Brasil é um país muito machista. Mas, por outro lado, essas pesquisas nos revelam que as mulheres ganharam mais espaços na sociedade, e o nosso trabalho institucional informativo, com tais resultados, impulsionaram as mulheres a buscarem uma solução na rede de atendimento oferecida a elas, para eliminarem seus respectivos ciclos de violência. Porque elas representam as mulheres vítimas que buscaram denunciar seus agressores e conseguiram ultrapassar o muro invisível da violência em seus lares, conseguiram vencer o medo de vingança e a preocupação com a criação dos seus filhos. Com fé e esperança em uma vida melhor, elas eliminaram suas crenças de que aquelas suas agressões seriam as últimas e buscaram empoderarem-se, livrando-se das suas dependências financeiras, que normalmente são os motivos dos seus silêncios.
 
PJ – Um levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Instituto Avon revela que nove em cada 10 pedidos de medida protetiva são concedidos pelo Judiciário. No entanto, em 30% dos casos, a concessão é dada após o prazo legal, que é de até 48 horas após o pedido. O que é avaliado para que a medida protetiva seja concedida e por que, nesses casos, há demora na concessão?

FS – A medida protetiva deve ser sempre aplicada quando configurada uma situação de urgência no caso de risco atual ou iminente à vida, à integridade física ou psicológica da mulher e sua família em situação de violência doméstica e familiar. Certamente a demora deve ser atribuída ao acúmulo de casos nos Juizados e Varas Especializadas, mas, no nosso Estado, o Judiciário desenvolve esse julgado de forma célere, porque todo o nosso processo é realizado on-line.

PJ – Em quais situações a mulher deve buscar atendimento judiciário, como a medida protetiva, por exemplo?

 
FS – As mulheres devem buscar atendimento judiciário todas as vezes que se sentirem violentadas em sua dignidade como pessoa humana – seja de qualquer forma. É importante informar que a mulher não precisa estar acompanhada de advogado. As medidas protetivas têm caráter autônomo, isto é, não dependem da instauração de inquérito policial nem de ação penal. O processo tramitará no Juízo competente com rapidez para que a proteção seja efetiva. A Lei Maria da Penha determina dois tipos de medidas protetivas de urgência, que são elas: 1) as que obrigam o agressor a não praticar determinadas condutas; 2) as medidas que são direcionadas à mulher e seus filhos, visando protegê-los.
 
PJ – No último dia 23, o CNJ encerrou a 16ª Jornada Maria da Penha, evento que discute e busca aprimorar as políticas públicas e o papel do Judiciário no cumprimento da Lei Maria da Penha, que é um marco da legislação na defesa pelos direitos da mulher no Brasil. Na opinião da senhora, a lei cumpre efetivamente seu papel ou ainda necessita de aprimoramento no que se refere ao enfrentamento à violência contra a mulher?

FS – A Lei Maria da Penha é considerada a principal norma que prevê importantes medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher em território brasileiro e tem passado por mudanças sim, desde que ela foi instituída (Lei 11.340/06, de 7/08/2006). Muitas políticas públicas realizadas pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário foram implantadas buscando as melhorias dos atendimentos às mulheres vítimas desse tipo de violência. Nesses últimos 16 anos, foram criadas formas de assistências e proteção às mulheres, proporcionando-lhes condições para o exercício efetivo dos seus direitos a uma vida digna, com segurança, saúde, alimentação, educação, cultura, moradia, acesso à Justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à liberdade, a uma convivência familiar e comunitária harmoniosa.
 
PJ – Ao final da Jornada Maria da Penha, é gerado um documento chamado de Carta da Jornada, que compila orientações e medidas que podem ser adotadas para melhorar o combate à violência contra a mulher. Nesse ano, a Carta recomenda, entre outras coisas, que os Tribunais de Justiça ampliem e estruturem as varas e juizados especializados em violência contra a mulher. Como o TJRN pretende fazer com que essa medida chegue aos rincões aqui do estado, por exemplo?

FS – O TJRN deve, pois, cumprir as referidas recomendações na medida do possível. Em especial, ampliando os números de Varas Especializadas nas Regiões do Seridó e Alto Oeste, tendo em vista que carecemos de uma Vara Especializada nas comarcas de Caicó e Pau dos Ferros, além de mais uma Vara Especializada na Comarca de Mossoró. Precisamos também interiorizar o nosso “Projeto Sala Lilás” em todos os Fóruns, garantindo uma prestação jurisdicional mais humanizada.

PJ – Nesse contexto da interiorização das ações de combate à violência contra a mulher, o TJRN anunciou que instalaria, em junho passado, uma unidade da Sala Lilás em Mossoró, para atender e amparar mulheres vítimas de violência. O equipamento já está em funcionamento?

FS – Com relação à “Sala Lilás” na Comarca de Mossoró, o espaço foi preparado e já estamos em fase de conclusão dos serviços, apenas aguardando as remessas dos equipamentos alusivos a alguns móveis e equipamentos de informática, por parte da administração do TJRN.

PJ – Quais as dificuldades a Coordenadoria enfrenta para promover a interiorização de iniciativas, como a implantação da Sala Lilás em municípios afastados da capital do estado?
 
FS – A “Sala Lilás” destina-se ao acolhimento adequado às mulheres, e cada comarca contará com uma equipe multidisciplinar especializada e ações concretas com um atendimento mais humanizado que firmam um compromisso de resguardar, além de formar, uma rede de proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar. A dificuldade da nossa CE Mulher em implantar as “Salas Lilás” nas diversas comarcas do nosso estado está no compromisso que deve ser feito entre o Juízo e a rede de atendimento da respectiva comarca. Para tanto, essa articulação feita pela CE Mulher requer a adoção de uma série de medidas administrativas, envolvendo recursos humanos e materiais, que demandam algum tempo e gastos sujeitos às normas comuns da Administração Pública.

PJ – Fala-se muito na necessidade de garantir a implementação da Lei Maria da Penha por meio de políticas públicas que melhorem as condições de acesso à Justiça. De que maneira o Judiciário tem agido para assegurar esse acesso à Justiça assim como a proteção da mulher vítima de violência?

FS – A violência doméstica e familiar tem-se como aquela que ceifa a vida, agride ou lesa física, psicológica, sexual, moral ou financeiramente a mulher que esteja envolvida numa relação familiar ou afetiva entre a vítima e seu agressor. Ele pode ser representado na figura de alguém que more na mesma casa, como o pai, mãe, tio, filho ou ainda qualquer pessoa que tenha algum outro tipo de relacionamento, porque nem sempre é o marido, companheiro ou namorado. O crescente aumento nos números de processos tem levado a uma permanente pressão sobre o Judiciário para que invista na criação de novos serviços e na capacitação de pessoal para uma melhoria no atendimento especializado.
 
PJ – Nesse contexto, poderia citar exemplos de melhorias?

FS – Alguns resultados já podem ser vistos, como a ampliação no número de Juízos Especializados em Violência Doméstica e Familiar – na Comarca de Natal, temos três Varas, uma em Mossoró e outra em Parnamirim. A contratação de diversos profissionais especializados para compor as equipes multidisciplinares das diversas comarcas, bem como a instalação das mencionadas novas unidades, por si só, representam um fator importante para aplicação da Lei Maria da Penha, viabilizando o acesso à Justiça. Todavia, é de fundamental importância que essas varas especializadas e demais unidades nas comarcas do interior estejam integradas à rede de atendimento especializado, facilitando os encaminhamentos intersetoriais requeridos pela abordagem integral para o enfrentamento da violência doméstica e familiares contra a mulher.
 
PJ – E quais mecanismos a CE Mulher do TJRN tem utilizado para promover o aprimoramento das políticas judiciárias?
 
FS – As políticas judiciárias têm sido uma preocupação da CE Mulher do TJRN, incentivando a capacitação de profissionais das diferentes áreas e todos os envolvidos com a aplicação da Lei Maria da Penha, oferecendo nossos serviços de assessoria na edição de normas técnicas, manuais, voltados a aprimorar o atendimento e melhorar o acesso à Justiça para as mulheres potiguares em situação de violência doméstica e familiar.
 

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