Procurador do Ministério Público do Trabalho, Gleydson Gadelha sobre trabalho escravo: ‘somos fornecedores dessa mão de obra para todo o país’ (Divulgação) Nesta semana, em que órgãos fiscalizadores divulgaram dados alarmantes sobre trabalho em condições análogas à escravidão – a chamada escravidão contemporânea – a exemplo do resgate de 337 trabalhadores na Operação Resgate, o Portal Jurídico conversou com o procurador do Trabalho Gleydson Gadelha. Responsável no Rio Grande do Norte pela Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete), do Ministério Público do Trabalho, ele detalha o atual cenário do trabalho escravo no estado, relacionado, diretamente, à vulnerabilidade social das pessoas exploradas. Fala, ainda, das dificuldades enfrentadas pela investigação e alerta para a importância do acompanhamento e auxílio de programas sociais às vítimas desse crime.
PORTAL JURÍDICO - O senhor lidera, no Rio Grande do Norte, a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete). Qual o cenário desse setor aqui no estado?
GLEYDSON GADELHA - O cenário do enfrentamento ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas, aqui no estado do Rio Grande do Norte, muito se assemelha a todo o país. Nós temos esse fenômeno, infelizmente, em todo o nosso país, com suas características. Alguns mais marcados pela questão de determinados setores, como sucroalcooleiro, na laranja, na maçã, outro na erva mate, outro na exploração do extrativismo vegetal, outro na mineração, outro de imigrantes e assim por diante. Mas, nós temos aqui, também, as nossas características. O Rio Grande do Norte é um estado razoavelmente pequeno, mas ele tem vários cenários econômicos e cenários ambientais. Por exemplo, na região da exploração do caulim no Seridó, no extremo do estado com a Paraíba, nós temos ainda marcado na atividade mineral, na atividade de extrativismo do caulim, em alguns tipos de extração de pedras, mas também na agricultura, temos o trabalho doméstico; em Natal é muito evidente a questão do trabalho escravo, na mendicância, inclusive envolvendo crianças. Alguns grupos organizados criminosos podem até se utilizar disso.
PJ - Sobre essa questão do trabalho escravo ligado às atividades domésticas, como costuma ocorrer?
GG - Nós temos o trabalho doméstico que ainda é invisível para boa parte da sociedade; é aceito, ainda, como uma forma de benefício à pessoa que é explorada. Culturalmente, ainda temos a figura de que as pessoas são levadas logo cedo para a casa de uma pessoa e trabalham cuidando de seus filhos, e ali ficam por muito tempo. Então, o estado do Rio Grande do Norte tem suas próprias características de trabalho escravo, de trabalho em condição análoga de escravo. E sempre há uma característica marcante que nós somos fornecedores dessa mão de obra para todo o país. É muito comum nas atividades feitas nos outros estados que encontremos pessoas oriundas do estado do Rio Grande do Norte, e, às vezes, famílias inteiras que passam por essa situação, e não é a primeira vez.
PJ - Em fevereiro deste ano, em Mossoró, o resgate de uma mulher que vivia há 32 anos em condições de trabalho análogas à escravidão mostrou que a prática segue acontecendo e vitima, especialmente, pessoas em situação de vulnerabilidade social. Quais as ações a Coordenadoria realizam no sentido de anular esse tipo de ocorrência?
GG - O setor, principalmente na atividade de trabalho doméstico, é muito difícil você conseguir uma erradicação, porque essas pessoas estão, às vezes, alienadas à sua própria condição de vítima. São pessoas que começaram, em regra, muito cedo, nesse tipo de trabalho. São pessoas que foram levadas a acreditar que estão passando por um benefício naquela família, naquele grupo familiar, têm vínculos muito fortes, e têm dificuldade, por isso, a se reconhecerem como vítimas. Às vezes, até dificultando a própria investigação. Então, para que isso aconteça, para que esse combate aconteça, nós temos que estar preparados para uma abordagem específica, e levar essas pessoas a desmistificar, descobrirem a sua condição.
PJ - Isso teria ligação com as condições de pobreza a que muitas dessas pessoas estão submetidas?
GG - É uma vulnerabilidade social, principalmente advinda da miséria, do empobrecimento. Essas pessoas têm sempre um perfil de vulnerabilidade social. Agora, algumas características são muito importantes, como existe no próprio trabalho doméstico: a maioria são mulheres, a grande maioria preta ou parda, pessoas que abandonam o estudo para trabalhar; são levadas pelo mesmo discurso de serem ajudadas, e acabam criando vínculos. E, como tudo sempre acontece, em sua maioria das vezes acontece, nos casos de trabalho precoce, o trabalho infantil e de adolescente, essas pessoas têm a sua vulnerabilidade ainda aumentada por estarem em fase de desenvolvimento, sendo mais submetidas a situações de exploração, muitas vezes até sexual. Então, isso é uma chaga que deve ser enfrentada pela sociedade como um todo.
PJ - Falando especificamente sobre o crime praticado através da exploração do trabalho doméstico, há mais dificuldades na investigação?
GG - Há uma grande dificuldade de investigação. São casas, lares, então, para que adentre nessas casas, o Ministério Público do Trabalho tem se utilizado de medidas e liminares da Justiça, mostrando alguma evidência para entrar na casa das pessoas, levar a auditoria fiscal do trabalho que é essencial nesse trabalho, nesse serviço, para que seja feita uma entrevista, sejam levantados os elementos. A partir disso, a pessoa é encaminhada, pode ser resgatada. É uma grande dificuldade tirar essa pessoa, às vezes, do local, porque ela não se reconhece como vítima, e a gente tem que levar e dar um tratamento a essa pessoa.
PJ - E após o resgate, existe algum trabalho de acompanhamento junto à pessoa resgatada?
GG – Temos. Através de mecanismos próprios, com grupo multidisciplinar, que ajude essa pessoa a se entender na sua real condição. Essa pessoa deve ser incluída também nos programas sociais, no amparo ao desemprego, e para que ela tenha essa condição de sobrevivência, o espaço necessário, o tempo necessário para pensar. Muitas vezes nós temos nos utilizado de medidas aproximadas ao que é a Lei Maria da Penha, porque existem vínculos muito fortes com essas pessoas, elas precisam de uma proteção em relação às pessoas da família em que ela estava, naquele núcleo familiar, porque, às vezes, a pessoa não tem o espaço suficiente para pensar ou até mesmo sofrem algum tipo de violência. Então, a gente precisa de tempo, precisa de equipe e precisa de recursos para que essas pessoas tenham o acolhimento devido no que nós chamamos de pós resgate. Isso é um grande desafio e nisso, que é uma atividade complexa, a gente precisa de muita gente. E o Ministério Público tem tentado se preparar para essa situação com os nossos parceiros habituais: a Auditoria Fiscal do Trabalho, municípios, os CREAS, a atividade do judiciário que tem nos ajudado demais através de decisões inovadoras e até da própria estrutura do judiciário estadual, que tem, às vezes, nos fornecido profissionais para participar dessas atividades.
PJ - Nesse sentido, qual seria o maior desafio enfrentado pela Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas?
GG - O nosso grande desafio, hoje, é traçar um plano de acompanhamento a essas pessoas. A depender da idade, a depender se essas pessoas ainda têm vínculos com parentes. Às vezes é muito comum que tenha se perdido essa ligação de parentalidade. Mesmo existindo pessoas vivas, eles não se reconhecem como parte daquela família originária. E algumas relações têm que ser reconstruídas, e isso leva tempo e leva a participação necessária de alguns profissionais. Esse pós resgate, além dessa questão de afetividade, além dessa questão e religação com a sociedade, algumas pessoas não estavam habituadas a participar da sociedade. Então nós temos que nos preocupar também com a questão do sustento da pessoa. Na maioria das pessoas essa pessoa não tem condições de se manter, essa pessoa precisa da ajuda do estado, dos programas sociais, dos programas de apoio ao trabalho. Essa pessoa vai ter demanda judicializada pelo próprio Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública da União tem participado também, e nós levamos isso ao judiciário para que essas pessoas tenham amparo dessa condição de subsistência. Além disso, são pessoas que, como foram levadas a parar, no caso do trabalho doméstico, parar de estudar, elas precisam de ajuda no retorno ao mundo do trabalho. Essas pessoas precisam passar por programas que façam essa adequação, esse nivelamento. E isso pode ser feito através de cotas, cotas de pessoas vítimas de trabalho escravo, essas pessoas podem passar por programas de qualificação; têm prioridade nisso.
PJ - Aqui no Rio Grande do Norte existe algum trabalho que ampare as vítimas do trabalho escravo, dentro dessa perspectiva relatada pelo senhor?
GG - No caso do Rio Grande do Norte, especificamente um caso em Mossoró, a Justiça estadual da Vara de violência contra a mulher, uma decisão do doutor Renato Magalhães, determinou que essas pessoas, mulher e a família, tivessem prioridade na aquisição de casas, residências fornecidas pelos programas sociais. Uma vez que, uma das alegações dela é que ela não tinha uma residência para a família. Então, são esses tipos de decisões que nos animam nessa busca e fazem com que, além de outras atividades - há um programa em andamento no Ministério Público nesse sentido, além de outras atividades, nos faz acreditar, ainda, nessa possibilidade de enfrentamento dessa questão, com êxito por parte da sociedade do estado brasileiro.
PJ - Nos primeiros sete meses deste ano foram 1.178 pessoas resgatadas em todo o Brasil. Nessa quinta-feira (28), uma ação conjunta, denominada de Operação Resgate, resgatou 337 trabalhadores em condições de trabalho análogas à escravidão. Podemos dizer que os órgãos fiscalizadores estão ganhando a guerra contra os exploradores da chamada escravidão contemporânea?
GG - Quanto aos números da Operação Resgate desse ano... Na verdade, a Operação Resgate tem se dado, nos últimos anos, de maneira ininterrupta dentro do Ministério Público e seus parceiros, a Auditoria Fiscal do Trabalho, o Ministério Público Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Federal, a Defensoria Pública da União e, em determinados lugares, outros órgãos que, pela característica, são indispensáveis, como em algumas atividades o Exército Brasileiro, polícias ambientais, serviços sociais de amparo municipal e estadual, as polícias dos estados. Mas, nesse ano, realmente os números se mostraram maiores.
PJ - Esse número expressivo seria reflexo da piora do cenário do trabalho escravo no país ou de uma atuação mais efetiva dos órgãos fiscalizadores?
GG - Há essa sensação de que está sendo mais visível o trabalho em condição análoga de escravo, mas esses números são resultados de processos que já, a própria sociedade que já demanda mais o Ministério Público, demanda mais os seus parceiros. O número de denúncias que tem chegado, a expertise que os órgãos têm; mesmo no caso, por exemplo, da Auditoria Fiscal do Trabalho, que a cada dia tem um maior número de pessoas afastadas, pessoas que são aposentadas sem concurso para repor, os que ficam, mesmo em menor número, ainda têm uma grande expertise, um grande conhecimento da causa, um grande envolvimento pessoal. No caso do Ministério Público do Trabalho, as organizações de tentar fazer com que essas operações ocorram o mais rápido possível, para que o êxito seja maior; no caso da Defensoria Pública da União, sempre dispondo de pessoas para nos acompanhar, no caso das polícias e do MPF sempre dispondo de pessoas para participar. Uma vez que esses processos também podem ser penais e é muito importante que estejam envolvidos órgãos que tenham a percepção penal, para que, até a construção desses procedimentos, desses processos, sejam levados à Justiça em condições melhores de julgamento, julgamento mais rápido. Então, não é só a questão de ter o aumento, é questão, também, de maior envolvimento da sociedade nessa atividade de combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas.
PJ - No mês de dezembro completa 19 anos da inclusão, no Código Penal, da lei 10.803, que prevê pena de 2 a 8 anos para quem explora o trabalho escravo no Brasil. Na opinião do senhor, a legislação ainda é branda e pode favorecer para que o crime de exploração do trabalho escravo siga ocorrendo no Brasil?
GG - Quanto ao Código Penal, é muito importante que haja o reconhecimento dos tipos penais relativos ao trabalho escravo e também à questão da ligação com o tráfico de pessoas, as qualificadoras, e assim por diante. Porque, a partir disso, nós temos a possibilidade de envolver outros órgãos que tradicionalmente eram mais ligados à atividade policial, à atividade investigativa policial. E, também, essas pessoas serem responsabilizadas, além de outros crimes, que é muito comum, nesse caso, que haja outras violências contra as pessoas, contra seus bens, e quanto a sua liberdade, liberdade propriamente dita, liberdade sexual; além de tudo isso, haja a responsabilização por um tipo, um tipo autônomo que é o tipo de trabalho escravo. E isso é reconhecido como uma boa prática do governo brasileiro. O estado brasileiro tem essa vantagem legislativa, normativa, para que dê esse amparo às pessoas que foram encontradas nessa condição.
PJ - E o que impede que haja, de fato, a punição dos culpados?
GG - O grande problema é o próprio sistema. Geralmente, as pessoas que são acusadas nesse crime, na maioria das vezes, com muitos fundamentos, indícios, processos e inquéritos muito bem lavrados, bem construídos, essas pessoas conseguem delongar demais a demanda judicial. Utilizam-se de recursos, utilizam até o último grau, e isso causa um prejuízo para o encerramento dessa questão. Mas, ao lado disso, existem outras medidas, também, de natureza patrimonial, natureza trabalhista, que são ainda mais efetivas e que têm trazido efeitos sobre essas situações que, às vezes, são mais palpáveis. Quando a condenação vem, ela vem para coroar essa situação, e para mostrar à sociedade que, além de ser uma questão que causa prejuízo na esfera trabalhista, ela está ofendendo, também, a própria condição humana, a dignidade da pessoa humana, numa esfera gravíssima, que é a esfera penal. Não é comum que as pessoas tenham conhecimento da parte processual e penal quanto a esses tipos, e os tribunais têm alguma relutância em firmar alguns julgamentos. Mas, há no caso brasileiro julgamentos muito bem formulados, denúncias, sentenças, acórdãos, e até decisões de tribunais superiores na parte penal, mostrando que é possível fazer, sim, a condenação penal com grande êxito e formando uma resposta ainda mais grave para os casos de ofensa à dignidade do trabalhador, a dignidade das pessoas através do trabalho escravo.
PJ - No caso emblemático, registrado em Mossoró, o resgate foi possível devido a uma denúncia, no Ministério do Trabalho e Previdência, através da conta @trabalhoescravo no Instagram. Nesse sentido, as redes sociais podem ser consideradas aliadas dos órgãos fiscalizadores?
GG - Redes sociais são sempre uma questão que deve ser considerada, principalmente porque, no caso de trabalho escravo e tráfico de pessoas, mais importante do que quem denuncia é a própria formação da denúncia. São as informações que você tem disponível. Às vezes, a pessoa quer sigilo, é um direito ter o sigilo. Às vezes, até mesmo o anonimato. Mas ela dá informações tão fortes, tão importantes, que é possível, já a partir daquele momento, fazer-se uma investigação. Então, redes sociais são importantes como medida de sensibilização, como medida de informação, levando a informação às pessoas, na prestação de contas e também essa questão de tomar denúncia da sociedade, possibilitando que as pessoas tenham a forma mais democrática possível. O cuidado que se deve ter é, na hora de fazer uma denúncia, ser o mais específico, porque, deve-se pensar que quanto mais tempo, quanto mais elementos se trouxer, mais rápido será a investigação. Isso é importante para que a gente tenha elementos para correr atrás. Algumas situações são muito perigosas, traz problemas, até para a vida das pessoas. Então a gente tem que ter uma resposta o mais rápido possível.
PJ - Ferramentas como a imprensa também ajudam nesse contexto, de denunciar e trazer à tona casos de exploração do trabalho análogo à escravidão?
GG - Nós contamos também com a própria imprensa. A imprensa tem se mostrando muito importante quanto a coletar dados, uma vez que tem grande penetração na sociedade. E a imprensa responsável, como é a regra, ela consegue até, através do trabalho jornalístico, trabalho investigativo, trazer uma denúncia já muito bem estruturada. E a gente consegue correr atrás, dando uma resposta mais rápida e mais qualificada.