03/07/2022 às 05h00min - Atualizada em 03/07/2022 às 05h00min

‘A tendência no Direito é extinção do físico e consagração do virtual’

Advogado Marcos Araújo analisa o impacto da digitalização no Direito e na sociedade, e aponta avanços e desafios no mundo jurídico

Advogado Marcos Araújo reflete sobre Direito e sociedade contemporânea (foto: Cedida)
O advogado Marcos Araújo atende à equipe de reportagem do PORTAL JURÍDICO com a educação que lhe é peculiar. A voz mansa, o semblante afetuoso, sempre, contudo, a transmitir segurança, firmeza. Atencioso, atende, de pronto, o pedido de entrevista, apesar das inúmeras atribuições em razão de ser dos mais renomados advogados, embora exale humildade.

No bate papo, fala sobre recente obra, novelo pelo qual se desenrola reflexão sobre o impacto da digitalização no Direito e na sociedade pós-moderna. Faz observações sobre o presente e alerta para o futuro, ao relevar a tecnologia, sem, no entanto, desprezar o protagonismo da inteligência humana, que esbanja, naturalmente, sem afetação. Confira:
 
 
PORTAL JURÍDICO – O senhor é um dos organizadores do recém lançado livro “O Direito e as Novas Tecnologias na Sociedade da Informação”. Qual o propósito da obra?

MARCOS ARAÚJOA intenção era dupla: a primeira, fazer um registro dos 30 anos do nosso escritório de advocacia; a segunda, apresentar aos profissionais do Direito as mais recentes mudanças impostas pela tecnologia nos diversos campos das atividades jurídicas.
 
PJ – De forma prática, o que as mais recentes inovações tecnológicas já impõem nos ordenamentos jurídicos e na própria prática diária do Judiciário?

MA – São notáveis os impactos. John Kennedy disse de certa vez que “a mudança é a lei da vida e aqueles que olham somente para o passado ou presente certamente perdem o futuro”. A tendência no Direito é a extinção do físico, do presencial, com a consagração do virtual. O processo não é mais de papel, é digital. O Conselho Nacional de Justiça tem estimulado a opção pelo “Juízo 100% Digital”.

 
O Tribunal deixou de ser um lugar, para ser um serviço. Eu não preciso mais me deslocar ao Fórum para realizar um ato profissional. Juízes, promotores e advogados fazem audiências de suas casas. Outro dia, participei de um julgamento no Superior Tribunal de Justiça, que fica em Brasília, fazendo sustentação oral sentado na minha sala.

O exercício profissional na área do Direito exige, a cada dia mais, conhecimento técnico sobre ferramentas tecnológicas, a exemplo de aplicativos e plataformas para reuniões e videoconferências, protocolos de petições, intimações de atos processuais etc.
 
PJ – E como essas novas tecnologias no Direito podem beneficiar o (a) cidadão (a)?

MA – Os avanços tecnológicos mudaram a sociedade, os seus instrumentos de comunicação, forma de convivência, ambiente de negócios, espaço público para a manifestação do pensamento etc. Vivemos em uma sociedade conectada pela tecnologia. Hoje, muitas das práticas sociais já se dão no âmbito tecnológico digital, e de tão habitual, se entrelaçou à vida cotidiana. Os computadores controlam a vida das pessoas, das suas relações pessoais, com os parentes – pais e filhos – e amigos, profissionais (trabalho, prestação de serviços), as econômicas (bancos, compras, e-commerce) e culturais (formação educacional, cursos à distância, livros, filmes etc). Não existe mais sociedade sem o uso do computador. Essa reestruturação social invisível provocada pelas tecnologias abarca várias facilidades. Benefícios são muitos. Do pedido de aposentadoria que se processa apenas pelo acesso ao site do INSS, à comida que chega a sua casa a um clique de um aplicativo. No entanto, temos problemas de diferentes ordens.
 
PJ – Então, quais os efeitos colaterais no mundo jurídico de toda essa disrupção tecnológica?

MA – O surgimento da Sociedade Digital se dá numa sociedade desigual. Pode se dizer que a digitalização é uma característica de uma sociedade elitista e monopolista, onde as diferenças e problemáticas só aumentaram ou se agravaram. Há, hoje, uma patente segregação profissional por competência tecnológica: aquele mais idoso e refratário ao uso da tecnologia, não terá a mesma oportunidade de empregabilidade do que os jovens das gerações “millenials” e “z”, que são os nascidos depois de 1981.

Depois, um outro problema que enxergo é a exclusão digital. Como possibilitar que um cidadão morador da zona rural possa participar de uma audiência virtual se ele não tem internet, e nem mesmo computador? Depois, se tiver acesso à rede e ao computador – ainda que seja um tablet ou um smartphone, quem garantirá que ele possa ter a informação necessária de como usar os aplicativos que possibilite o seu ingresso no ambiente virtual, como Teams, Zoom, Google Meet, entre outros?
Há um terceiro, relacionado à falta de efetividade do serviço público de Justiça. A concessão dada pelo Estado para que a Justiça funcione virtualmente não pode significar a sua inatividade. O teletrabalho precisa ser aprimorado. São notórias as reclamações com a limitação de funcionamento do Poder Judiciário, em todas as instâncias.  O atendimento digital tem sido uma quimera, pois quase nunca se consegue uma resposta rápida nos meios eletrônicos disponibilizados para contato, como em números de whatsapp, e-mails etc.  Deve ser fiscalizado de algum modo o cumprimento dos horários e das tarefas programadas para os servidores e fóruns judiciais.
 
PJ – O Brasil está bem servido em termos de legislação para enfrentar os desafios das novas tecnologias na sociedade da informação?

MAAinda não. Estamos construindo aos poucos. Por exigência internacional e de relações econômicas, o Brasil criou um microssistema jurídico em defesa da privacidade no ambiente virtual, especialmente voltado para o tema da tutela jurídica da proteção de dados, composto inicialmente do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), com regras gerais; um corpo autônomo com regras e princípios, consolidado na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018), e, por fim, a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (Lei nº 13.853/2019), com vocação sancionadora e disciplinadora quanto à guarda e tratamento de dados. O propósito desta “agenda jurídica” nacional, frente à constante e veloz evolução tecnológica, se dá dentro do seguimento de uma “agenda internacional”, que objetiva uma concretização da proteção dos dados pessoais como um direito fundamental.
 
PJ – Estamos a menos de quatro meses do primeiro turno das eleições gerais deste ano. O que se esperar do pleito em matéria de Direito Eleitoral?

MAA sociedade virtual é uma “Ágora” sem controle. Se diz e se posta o que se quer. Há um turbilhão de informações e desinformações em desalinho, a favor ou contra tudo e todos. Jean Baudrillard, sociólogo e filósofo francês, já o disse que “o mundo virtual tomou de assalto o mundo real."  Uma mentira criada e publicada em redes sociais, dificilmente terá meios de contenção na sua repristinação por medida judicial.

 
A Justiça Eleitoral não tem ainda o menor preparo para conduzir um processo eleitoral num mundo totalmente digitalizado em aspectos como controlar a propaganda, conter fake News,  mensagens subliminares, psicografia digital etc.

Ora, nem os americanos conseguiram conter a manipulação digital, como se deu nas eleições de Donald Trump. Como sabemos, a Cambridge Analytica teria comprado acesso a informações pessoais de usuários do Facebook e usado esses dados para criar um sistema que permitiu predizer e influenciar as escolhas dos eleitores nas urnas, segundo a investigação dos jornais The Guardian e The New York Times. 
 
PJ – São muitos os desafios...

MA – É preciso perder a ingenuidade em relação à cibernética. A internet é como um iceberg. A gente só vê uma parte aparente. A parte mais complexa e dura está submersa. Aplicações e ambientes tecnológicos estarão voltados nesta eleição para alterar a escolha livre e consciente do eleitor. As amarras informacionais, as narrativas e os discursos interpretativos dominantes tendem a ideologizar as eleições para uma escolha binária/polarizada entre duas candidaturas à Presidência.
 
PJ – O que o Brasil pode tirar de lição dos desafios impostos às instituições nacionais, diante, por exemplo, da tentativa de descrédito do Supremo Tribunal Federal e da Justiça Eleitoral?

MA – Temos um dilema atual que é a fuga da realidade, também causada pela utilização massiva dos recursos da internet (cibercultura). A hiperconexão tem produzido pessoas superficiais, totalmente desligadas da realidade e desinformadas. É neste ambiente que surge falsos profetas do “patriotismo” como um Daniel Silveira, um Roberto Jefferson, para vilipendiar a democracia e descreditar as instituições. Seguem a um modelo belicoso instituído pelo chefe da nação em vulnerabilizar os demais poderes republicanos. Isto é péssimo, porque gera uma crise institucional perigosa. Os ataques direcionais são propositais, mas seguem também a um modelo preestabelecido de criticar por criticar, de menosprezo à nossa capacidade técnica. A urna eletrônica é uma invenção genuinamente brasileira, adotada por mais de 70 países no mundo. Se fosse americana, alemã ou japonesa, não se poria tal dúvida. O brasileiro é xenófilo (tem amor a tudo que é de fora), e desconstrói tudo que é valor interno.
 
PJ – Para finalizar, qual a análise do senhor o meio jurídico de Mossoró e região, em termos de conquistas e desafios?

MA – Não padeço de cainofobia (do grego “kainos”, medo do novo), mas o nosso futuro preocupa. É inegável que o uso de tecnologia de informação robustece o acesso à justiça, pois favorece a otimização dos modelos de solução de conflitos. Todavia, existem outros problemas e dificultadores, como a exclusão digital dos advogados mais antigos e até mesmo a obsolescência tecnológica dos próprios tribunais.

Por exemplo, o PJE, que é o sistema operacional utilizado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte e de outros estados da federação, quase sempre vive em pane. Também merece ressalvas a edificação utopista de tribunais online que o Conselho Nacional de Justiça defende, quando juízes, promotores e servidores não estão ainda ambientados e compromissados com o trabalho remoto. Já teve até mninistro do STJ fazendo sessão de cuecas...

Assim, paralelamente devemos comemorar os mecanismos que facilitam o acesso à justiça virtual, mas censurar o distanciamento e a limitação operacional e burocrática com os servidores do Estado. Outro dilema é o avanço dos algoritmos de Inteligência Artificial e a utilização deles em julgamentos em série e padronizados. Muito em breve os juízes confiarão a esses algoritmos a tomada de decisões. E então a Inteligência Artificial é quem definirá quem terá razão ou não no processo. E neste ponto, a profecia de Yuval Harari: 'Afinal, qual será o significado da vida quando todas as decisões importantes serão feitas por algoritmos?'.

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