Direitos autorais: Rawpixel Ltd. VALIDADE CONSTITUCIONAL DOS DEPOIMENTOS NAS INVESTIGAÇÕES CRIMINAIS
Comum nas investigações criminais, os depoimentos dos investigados não podem ser colhidos em descompasso com o sistema de direitos e garantias constitucionais dos cidadãos, sob pena de serem considerados provas ilícitas.
Investigado ou não, em regra, o cidadão é a própria figura da personagem central do Romance "O Idiota", de Fiódor Dostoiévski, o príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin, indefeso diante das técnicas de interrogatório das autoridades estatais, sobretudo quando essas técnicas são utilizadas para impelir o investigado a agir ativamente na produção de prova contra si próprio e contra terceiros.
Daí que, do núcleo de direitos fundamentais dos investigados, despontam proteções mínimas, entre elas, a de ser assistido por advogado, de não produzir provas contra si mesmo (arts. 1º, inciso III e 5º, incisos II e LXIII, da Constituição Federal) e de permanecer em silêncio.
Ademais, não basta que a autoridade investigante emita advertência formal sobre o exercício desses direitos constitucionais do investigado, é preciso que a implicação e conseqüências jurídicas de não fazer uso dessas proteções sejam devidamente explicadas.
Esses direitos equivalem ao “Aviso de Miranda”, como ficaram conhecidos os chamados “Miranda Rights”, de origem norte-americana, que remonta ao caso havido na década de 60, precisamente o caso “Miranda versus Arizona”, em que a Suprema Corte norte-americana absolveu o acusado que havia sido condenado com base em confissão obtida, sem que tivesse sido informado de seu direito a ser assistido por um advogado e de permanecer em silêncio.
A Suprema Corte brasileira já consolidou esse entendimento, inclusive nos casos em que os depoimentos são tomados informalmente, no momento das abordagens, ou quando recebe voz de prisão por policial, em situação de flagrante delito (AgR em RHC 192798/SP, 2ª Turma).
Leia-se:
“O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR): Trata-se de agravo regimental no habeas corpus.
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VOTO
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR): No agravo regimental, a PGR pretende a flexibilização do comando constitucional do Aviso de Miranda, para que ele seja obrigatório apenas quando for formalizada a prisão do suspeito.
...
Observe-se que, para a configuração do crime de tráfico de drogas, foi o bastante a apreensão das substâncias em poder do paciente e do corréu Weslen. Todavia, para a configuração do crime de associação ao tráfico, o Juízo se pautou no interrogatório informal realizado pelos policiais no momento da abordagem, porquanto, a partir dele, deu-se início à busca na casa dos envolvidos.
É certo que os depoimentos prestados pelos policiais envolvidos na prisão do réu são válidos, mas não é essa a questão dos autos.
Não se trata de debate sobre a validade do depoimento prestado pelo policial responsável pela prisão do réu.
Estamos diante, aqui, do reconhecimento da legalidade ou não de um interrogatório informal, sem lavratura de termo, o qual, sequer, sabemos, de fato, foi realizado.
O policial afirma que o réu fez declarações no momento da abordagem e o teor dessas declarações foi tomado como se elas tivessem sido reduzidas a termo, tivessem ocorrido na presença do advogado e com o respeito às formalidades legais.
É que, da leitura dos depoimentos dos policiais responsáveis pela prisão do paciente, verifica-se que não foi sequer observado o comando constitucional, a partir do qual o preso deve ser informado acerca do seu direito de permanecer em silêncio.
Conforme tenho dito, a informação de que o suspeito tem direito ao silêncio deve ser prestada ao preso pelos policiais responsáveis pela voz de prisão e não apenas pelo delegado de polícia, quando de seu interrogatório formal.
Evidentemente, a todos os órgãos estatais dotados de poderes normativos, judiciais ou administrativos, impõe-se a importante tarefa de realização dos direitos fundamentais.
A Constituição Federal de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e oito incisos e quatro parágrafos [CF, art. 5º], reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos. A ideia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta, portanto, a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância.
O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los [art. 60, § 4º]. A complexidade do sistema de direitos fundamentais recomenda, por conseguinte, que se envidem esforços no sentido de precisar os elementos essenciais dessa categoria de direitos, em especial no que concerne à identificação dos âmbitos de proteção e à imposição de restrições ou limitações legais.
O direito ao silêncio, que assegura a não produção de prova contra si mesmo, constitui pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressões do princípio da dignidade da pessoa humana.
Como se sabe, na sua acepção originária conferida por nossa prática institucional, este princípio proíbe a utilização ou a transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações.
Por seu turno, no julgamento do HC 80.949/SP, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence, destaco que o STF consignou que a falta da advertência ao direito ao silêncio, no momento em que o dever de informação se impõe, torna ilícita a prova, ao fundamento de que “o privilégio contra a auto-incriminação nemo tenetur se detegere, erigido em garantia fundamental pela Constituição além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C.Pr.Pen. importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência - e da sua documentação formal - faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em conversa informal gravada, clandestinamente ou não”. [HC 80.949/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJe 14.12.2001] [grifei]
Dito isto, é evidente a obrigação do Estado, por meio da Polícia, de informar ao preso seu direito ao silêncio não apenas no interrogatório formal, mas logo no momento de sua prisão efetuada por policial militar, o que não aconteceu no presente caso e de cujo ato emanou a presente prisão em flagrante.
Nos autos da Reclamação 33.711, de minha relatoria, DJe 26.8.2019, a Segunda Turma desta Corte reconheceu a nulidade do interrogatório realizado pela Polícia Federal, ao qual ela chamou de “entrevista”, exatamente porque desrespeitados direitos fundamentais relacionados à não autoincriminação.
“Reclamação. 2. Alegação de violação ao entendimento firmado nas Arguições de Descumprimento de Preceitos Fundamentais 395 e 444. Cabimento. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deu sinais de grande evolução no que se refere à utilização do instituto da reclamação em sede de controle concentrado de normas. No julgamento da questão de ordem em agravo regimental na Rcl 1.880, em 23 de maio de 2002, o Tribunal assentou o cabimento da reclamação para todos aqueles que comprovarem prejuízos resultantes de decisões contrárias às teses do STF, em reconhecimento à eficácia vinculante erga omnes das decisões de mérito proferidas em sede de controle concentrado 3. Reclamante submetido a ‘entrevista’ durante o cumprimento de mandado de busca e apreensão. Direito ao silêncio e à não autoincriminação. Há a violação do direito ao silêncio e à não autoincriminação, estabelecidos nas decisões proferidas nas ADPFs 395 e 444, com a realização de interrogatório forçado, travestido de ‘entrevista’, formalmente documentado durante o cumprimento de mandado de busca e apreensão, no qual não se oportunizou ao sujeito da diligência o direito à prévia consulta a seu advogado e nem se certificou, no referido auto, o direito ao silêncio e a não produzir provas contra si mesmo, nos termos da legislação e dos precedentes transcritos 4. A realização de interrogatório em ambiente Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O documento pode ser acessado pelo endereço http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento. asp sob o código 118E-CC18-88A3-E86D e senha 5EC0-6281- 27F5-E828 Supremo Tribunal Federal Inteiro Teor do Acórdão - Página 1 de 28 Ementa e Acórdão RCL 33711 / SP intimidatório representa uma diminuição da garantia contra a autoincriminação. O fato de o interrogado responder a determinadas perguntas não significa que ele abriu mão do seu direito. As provas obtidas através de busca e apreensão realizada com violação à Constituição não devem ser admitidas. Precedentes dos casos Miranda v. Arizona e Mapp v. Ohio, julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos . Necessidade de consolidação de uma jurisprudência brasileira em favor das pessoas investigadas. 5. Reclamação julgada procedente para declarar a nulidade da ‘entrevista’ realizada e das provas derivadas, nos termos do art. 5º, LVI, da CF/88 e do art. 157, §1º, do CPP, determinando ao juízo de origem que proceda ao desentranhamento das peças”.
Observe-se que, na tal entrevista, o reclamante daqueles autos apôs sua assinatura no termo lavrado pela Polícia Federal, enquanto, nestes autos, sequer formalizaram o interrogatório, a evidenciar ilegalidade ainda mais acentuada, de modo a caracterizar uma espécie de confissão informal.
Frise-se, ainda, que, para que uma confissão judicial seja legítima, é necessário que haja lavratura de ata, com aposição da assinatura do réu e de seu defensor.
Da forma como foi implementada a condenação do paciente, basta que um magistrado qualquer afirme que o réu lhe confessou o crime informalmente, sendo totalmente desnecessário o registro de tal confissão em ata, já que o magistrado é agente do Estado e, por isso, suas declarações gozam de presunção de veracidade.
Penso que qualquer suposta confissão firmada pelo réu, no momento da abordagem, sem observação ao direito ao silêncio, é inteiramente imprestável para fins de condenação e, ainda, invalida demais provas obtidas através de tal interrogatório.
Não é verídica a afirmação feita pela PGR, no sentido de que o agravado era mero suspeito e, por isso, não possuía direito ao aviso de Miranda.
Desse modo, como se vê, assim que os policiais apreenderam a droga, procederam ao interrogatório clandestino e, por isso mesmo, inconstitucional, cujo teor foi utilizado, de forma exclusiva, para a condenação do crime de associação para o tráfico.
É inteiramente inverídica a afirmação de que o agravado, no momento da prisão, era mero averiguado, porquanto já de posse da droga.
Veja-se, ademais, que não se trata de anulação automática da condenação, sem observância à presença de eventuais provas independentes.
Na espécie, a única prova do crime de associação para o tráfico é uma suposta confissão que não sabemos se existiu, realizada ao arrepio da Constituição Federal, sem, sequer, ter sido lavrado termo.
É dizer: o policial teria, no entendimento da PGR, o poder de determinar o teor do que um suspeito disse ou deixou de dizer, sem que esse suspeito esteja assistido por advogado ou lhe seja garantido o direito ao silêncio, sendo as tais declarações consideradas como uma confissão capaz de, exclusivamente, sustentar uma condenação.
Desse modo, afastadas todas as declarações supostamente prestadas pelo paciente no momento da abordagem, o único crime possível seria o de tráfico de drogas, razão por que foi mantida a condenação nesse ponto.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
É como voto.”
O julgamento ora transcrito funda-se nas teses erigidas nas Ações de Descumprimento de Preceitos Fundamentais nºs 395 e 444.
Como se pode constatar, no momento das abordagens policiais ou nos interrogatórios formais, é assegurado ao investigado a proteção obsequiada pelo sistema de direitos e garantias constitucionais, entre eles, o privilégio contra a auto-incriminação e o exercício do direito de permanecer em silêncio, o que desautoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica dos investigados.