Olá! Começarei esta coluna me apresentando. Sou Judith Dantas, tenho 35 anos, sou advogada desde 2012, com registro perante a OAB/RN, mãe solo e uma feminista em construção. Aqui irei abordar os mais diversos temas. Hoje falaremos de temas muito polêmicos, mas que merecem sempre ser apresentados.
Nos últimos dias tivemos as nossas redes sociais, jornais, programas de entretenimento bombardeados por dois temas: ABORTO e ENTREGA VOLUNTÁRIA DE CRIANÇA PARA ADOÇÃO.
Antes de falar dos assuntos acima mencionados, vale fazer duas ressalvas de suma importância: a primeira, é que no Brasil o ABORTO É PERMITIDO, em apenas duas hipóteses, como prevê o artigo 128, incisos I e II, do Código Penal – se não há outro meio de salvar a vida da gestante, chamado aborto necessário, e se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
A segunda ressalva é a ENTREGA VOLUNTÁRIA PARA ADOÇÃO. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) incluiu desde 2017 o artigo 19-A uma forma de proteger as crianças – em geral bebês – de serem abandonados e de adoções irregulares. Essa entrega é simples, basta que a mulher manifeste seu desejo de oferecer a criança antes ou após o parto, entregando o nascituro em postos de saúde, hospitais, conselhos tutelares ou qualquer órgão da rede de proteção à infância.
Frise-se que há um procedimento a ser seguido, no qual a Vara da Infância e da Juventude verifica, junto com uma equipe técnica, se de fato a mulher quer ofertar o nascituro de forma voluntária. E essa mulher ainda pode se arrepender da entrega após 10 dias, hein?! Depois disso a criança é encaminha para ser adotada.
Devo informar ainda que a prática de deixar criança, ainda que seja na porta de alguém, no Brasil esse é um costume antigo, é crime de abandono de incapaz, previsto no artigo 133 do Código Penal, podendo ser punido com pena de detenção de 6 meses a 3 anos, possuindo agravantes como lesão corporal ou morte que aumentam a pena para 5 ou 12 anos, a depender da gravidade.
Feitas as ressalvas, abordaremos cada caso fartamente divulgado na mídia. O primeiro caso foi o da criança estuprada[1] prestes a completar 11 anos. A menina descobriu sua gestação com 22 semanas e só obteve autorização da Justiça, para que realizasse o parto antecipado[2] após as 29 semanas[3], diante da pressão social, tendo sido inclusive coagida psicologicamente pela magistrada do caso e pela promotora de justiça a dar continuidade à gestação para poder entregar voluntariamente a criança após o nascimento. Ou seja, se não bastasse a violência sexual, a menina ainda sofreu violência psicológica dos agentes do Poder Judiciário e de grupos conservadores nas redes sociais, além do afastamento do seio familiar, já que ela foi obrigada a ir para um abrigo, ficando longe da mãe.
Juridicamente, o hospital ou médico não deveriam ter se negado a fazer o aborto, pois o artigo 128, inciso II, do Código Penal, assegura que o consentimento da gestante é suficiente em caso de estupro. Percebe-se pelos trechos divulgados na mídia[4] que a menina a todo instante afirma que quer retirar o feto de seu ventre e mostra-se bastante confusa com as informações técnicas passadas pela juíza e pela representante do Ministério Público.
Não há respaldo jurídico ou científico que assegure o hospital ou médico fazendo-os “se recusarem” a realizar a interrupção da gestação em caso de estupro. A norma jurídica e técnica no Brasil é bastante clara ao informar que o abortamento pode ser realizado até a 20ª ou 22ª semanas e com produto da concepção pesando menos de 500g, sem riscos para a gestante, haja vista a Norma Técnica do Ministério da Saúde[5], que, em atendimento à Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, instrui, informa e qualifica as redes municipais, estatuais e privada.
A cartilha informa também que: “Para garantir o abortamento seguro para as mulheres em situação de gravidez decorrente de violência sexual, que assim o solicitem, é necessário que existam suprimentos e equipamentos adequados, aplicação de técnicas corretas e capacitação dos(as) profissionais de saúde. Além disso, o cumprimento de algumas medidas e cuidados simples é fundamental para que o abortamento seja oferecido de forma segura e acessível para a mulher nos serviços de saúde”[6].
Em resumo, o Governo Federal, por meio de sua Assistência Integral à Saúde da Mulher, garante um aborto seguro em caso de violência sexual, afirmam, também, que os direitos reprodutivos são fundamentais para os direitos humanos e que nas circunstâncias em que o aborto não é contra a lei o sistema de saúde deve assegurar os abortamentos de forma mais protegida possível.
No caso da menina de Santa Catarina, isso só foi assegurado após a 28ª semana e após um apelo público muito grande, tendo sido preciso violar o sigilo do processo para tentar impedir que a criança continuasse a ter o seu direito ao abortamento realizado.
Um absurdo atrás do outro. O Brasil teve em média 1 estupro a cada 10 minutos em 2021[7], em que a maioria desses estupros é de crianças e adolescentes. A pandemia da COVID-19 potencializou os casos de violência sexual, devido ao confinamento das mulheres em casa. O estupro é “cultural” numa sociedade construída sob o signo do patriarcado, no qual as pessoas do gênero feminino são vistas como objeto do desejo sexual das pessoas do gênero masculino.
As juristas que atuaram no processo da menor de idade estavam mais interessadas na vida do nascituro do que da menina-gestante, que estava ali atordoada e ludibriada com as mudanças que seu corpo sofria devido a gravidez tão precoce. Muito me espanta o sentimento de pesar dessas e de outras pessoas conservadoras que se preocupam com o suposto sofrimento de um ser que está por vir, mas não se compadecem com a dor de uma criança estuprada e com o corpo em ebulição por efeito dos hormônios.
O poder público, que teria o dever de garantir a inviolabilidade dessa criança e que após o estupro ela pudesse seguir a vida sem mais traumas, foi o causador de mais um abalo. O Judiciário, em tese, deve ser o interpretador da lei naquilo que cabe interpretação; nas normas que o legislador não permite interpretação deve aplicá-las. Por mais que pessoalmente e moralmente alguns membros do meio Jurídico ou alguns médicos (as) discordem, o direito não é seu, é de outrem.
Em pleno 2022, num Estado Democrático de Direito onde a Constituição assegura a todas as pessoas liberdade, segurança e que ninguém será obrigado a fazer alguma coisa senão em virtude de lei, não é assentido que pessoas que não concordam com o aborto queiram ditar regras com o corpo e vontade alheios.
O assunto é por demais vasto, por isso dividiremos esta coluna em duas partes. A próxima virá na semana seguinte, quando daremos falaremos sobre o segundo caso abordado na mídia – a entrega voluntária de um bebê fruto do estupro de uma artista.
[1] NOTA 1: Afirmo que ela foi estuprada, pois a lei penal assim diz no artigo 217-A – “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”.
[2] NOTA 2: A comunidade científica médica, trata como abortamento até as 22 semanas, após esse tempo é denominado ‘parto antecipado’, posto que o feto está com desenvolvimento maior e a sua chance de sobrevida também está aumentada.
[3] NOTA 3: VIDE NOTICÍAS - https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/06/23/menina-de-11-anos-que-foi-estuprada-em-sc-consegue-fazer-aborto-diz-mpf.ghtml
[4] NOTA 4: VIDE NOTÍCIAS DO - https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiza-sc-menina-11-anos-estupro-aborto/
[5] NOTA 5: Https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/prevencao_agravo_violencia_sexual_mulheres_3ed.pdf
[6] NOTA 6: PÁG. 77 da cartilha do Ministério da Saúde - https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/prevencao_agravo_violencia_sexual_mulheres_3ed.pdf
[7] NOTA 6: VIDE NOTÍCIAS - https://exame.com/brasil/brasil-registra-um-estupro-a-cada-dez-minutos-em-2021/