RESUMO
Elaborou-se o presente artigo científico com o claro objetivo de analisar a atual valoração da prova testemunhal no âmbito dos processos penais frente aos princípios constitucionais vigentes. A análise do modelo de persecução penal atualmente adotado revela que se dá enorme força probatória aos depoimentos colhidos das testemunhas dos fatos ilícitos. No entanto, é sabido que o processo de formação da memória no consciente humano não condiz com uma reprodução fidedigna dos fatos acontecidos. Há toda uma percepção sensorial, de estado de espírito e ânimo que interferem diretamente no processo de formação da memória, podendo, em certo ponto, alterar ou até mesmo modificar completamente a narrativa acontecida. Além disso, há trabalhos científicos que demonstram a possibilidade da implantação de memórias falsas, sendo a ocorrência deste tipo de evento bastante significativa para ser ignorada. O Direito Processual Penal lida com o direito fundamental à liberdade, um dos mais caros à nossa ordem constitucional vigente. Por essa mesma razão, há de se fazer a correta ponderação das provas produzidas nos autos, buscando evitar-se assim condenações injustas. Na elaboração do presente artigo científico firmou-se a hipótese de que atualmente o judiciário brasileiro dá enorme importância à prova testemunhal nos processos penais, sendo ela muitas vezes suficiente para a condenação do réu, o que iria de encontro aos ditames constitucionais mais profundos. Ao final do trabalho, confirmou-se a hipótese formulada, principalmente pelo fato da demonstração da falta de fidelidade com que são formadas as memórias e como é possível manipulá-las.
Palavras-chave: Processo Penal. Prova Testemunhal. Valoração.
ABSTRACT
The present scientific article was prepared with the clear objective of analyzing the current valuation of testimonial evidence in the context of criminal proceedings against the current constitutional principles. The analysis of the criminal prosecution model currently adopted reveals that enormous probative force is given to the testimonies collected from witnesses of illicit acts. However, it is known that the process of memory formation in the human consciousness does not correspond to a reliable reproduction of the facts that happened. There is a whole sensory perception, state of mind and mood that directly interfere in the process of memory formation, and may, at a certain point, alter or even completely modify the narrative that happened. In addition, there are scientific works that demonstrate the possibility of implanting false memories, and the occurrence of this type of event is too significant to be ignored. Criminal Procedural Law deals with the fundamental right to freedom, one of the most dear to our current constitutional order. For this same reason, the correct weighting of the evidence produced in the records must be carried out, seeking to avoid unjust convictions. In the elaboration of this scientific article, the hypothesis was established that currently the Brazilian judiciary gives enormous importance to testimonial evidence in criminal proceedings, which is often sufficient for the conviction of the defendant, which would go against the deepest constitutional dictates. At the end of the work, the hypothesis formulated was confirmed, mainly because of the demonstration of the lack of fidelity with which memories are formed and how it is possible to manipulate them.
Keywords: Criminal Procedure. Testimonial Evidence. Valuation.
É de conhecimento geral o caráter e inspiração fascista do nosso Código de Processo Penal, que herdou toda a sua base de fundamentação legal do regime ditatorial de Mussolini implantado na Itália em 1930. Uma das principais característica desse modelo processual penal é a sua opção pelo sistema acusatório – com fortes semelhanças com o inquisitorial, donde se destaca a prevalência e força da acusação perante a defesa do acusado. Não é demais afirmar que a paridade de armas nesse formato de processo penal é mera ilusão vanguardista, uma vez que não há a correta ponderação de forças entre acusação e defesa.
Nessa seara de administração do processo penal, um dos pontos fulcrais é o recebimento, aceitação e (principalmente) a valoração das provas obtidas no decorrer do trâmite processual penal. Um ponto sensível, e que gera intensos debates, tanto na doutrina quando na jurisprudência é o que versa sobre a força probatória da prova testemunhal. Por esta, podemos tomar todas as informações obtidas sobre determinado fato – que inicial e hipoteticamente representa um ilícito penal – a partir do depoimento de pessoas que têm informações relevantes sobre ele.
Fábio Menna (2007) define a testemunha como
Pessoa físca capaz, independente de condição econômica, raça, religião ou sexo, que pode depor, desde que não esteja no rol das pessoas suspeitas ou impedidas. Não se confunde com uma das partes do processo pois não tem qualquer interesse na demanda.
No Código de Processo Penal, a previsão para utilização da prova testemunhal, como objeto de informação no âmbito do processo está, está contida nos artigos 202 e seguintes, dos quais se destacam as seguintes determinações legais
Art. 202. Toda pessoa poderá ser testemunha.
Art. 203. A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade.
Art. 204. O depoimento será prestado oralmente, não sendo permitido à testemunha trazê-lo por escrito.
Parágrafo único. Não será vedada à testemunha, entretanto, breve consulta a apontamentos.
Art. 206. A testemunha não poderá eximir-se da obrigação de depor. Poderão, entretanto, recusar-se a fazê-lo o ascendente ou descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias.
Art. 211. Se o juiz, ao pronunciar sentença final, reconhecer que alguma testemunha fez afirmação falsa, calou ou negou a verdade, remeterá cópia do depoimento à autoridade policial para a instauração de inquérito.
Como se vê na determinação legal constante do Código de Processo Penal pátrio, o único requisito necessário para que a pessoa seja testemunha no âmbito do processo é que tenha conhecimento dos fatos acontecidos. No que tange à valorização da prova, não há previsão legal para qualquer obrigação que seja da prova e/ou confirmação dos fatos narrados, havendo apenas a ressalva de que caso constatado o crime de falso testemunho, os autos deverão ser remetidos aos órgãos competentes para investigação do crime. O que se frisa, nessa ausência de previsão legal de uma possível confirmação dos fatos narrados, é a validação da prova testemunhal – e sujeição da própria liberdade do acusado/réu (que está sendo discutida nos autos) – tão somente na palavra e honra da testemunha.
Atualmente em nosso país a prova testemunhal é um dos meios de prova mais utilizados no âmbito da persecução penal. Em alguns casos, principalmente quando o crime não deixa vestígios físicos, esse elemento de prova toma para si toda a prerrogativa da imputação penal. Muito embora seja bastante difundida e utilizada em nossa realidade, há toda uma questão de pano de fundo para o uso desse tipo de prova: a confiabilidade dos testemunhos das pessoas.
A primeira grande questão a ser enfrentada no que tange à aceitação irrestrita da prova testemunhal é a confiança excessiva na “memória” das testemunhas. A oitiva e colhimento desse tipo de prova pode ocorrer durante toda a fase de instrução processual. Sabemos que, no Brasil, o processo penal – em verdade a justiça como um todo – tem sido cada vez mais moroso, passando-se um considerável período desde a ocorrência do delito e o depoimento e oitiva das testemunhas. Esse interregno é mais que suficiente para que haja uma perda significativa das memórias, diminuindo a percepção e confiabilidade dos eventos “lembrados” pelas testemunhas.
Outro ponto que merece atenção é a possibilidade de implantação de memórias. Muito embora ao se levantar esta hipótese, somente vista em filmes como no blockbuster A Origem com Leonardo DiCaprio – se imagine logo uma rede de mentiras, a implantação de memórias não é algo inexoravelmente malicioso e feito de forma acintosa. A implantação de memórias aqui está muito mais relacionada à falsa percepção ocorrida a partir de agentes internos e/ou externos. À guisa de exemplo, é o que ocorre quando algum parente conta uma história de infância e que você não lembra inicialmente, mas que, quanto mais contada a história, de mais detalhes você passa a se lembrar. Há estudos, como os produzidos por Elizabeth Luftus, comprovando a ocorrência desse fenômeno. Uma vez sendo possível a “implantação de uma memória”, vê-se o risco existente na alta credibilidade dada à prova testemunhal no âmbito do processo penal.
Dada a importância e a força probatória da prova testemunhal na persecução penal, este artigo tem como objetivo analisar a valoração do depoimento colhido com as testemunhas no âmbito do processo penal, verificando se a força probatória dada a eles na atualidade é adequada ao contexto de sua produção e ao momento constitucional do nosso país. Não se ouvida a existência e importância do depoimento das testemunhas dos eventos ilícitos, no entanto, não se deve ignorar as lacunas e falsas memórias possivelmente existentes nos relatos colhidos.
A hipótese levantada para a elaboração deste artigo é de que a prova testemunhal atualmente assume uma importância no processo penal brasileiro não compatível com o sistema constitucional vigente, não estando de acordo com os preceitos constitucionais fundamentais – insculpidos no art. 5º da Magna Carta – devendo, portanto, ser reformulada a recepção e aceitação desse tipo de prova no seio do Processo Penal. Não está a se banalizar ou diminuir os relatos das testemunhas, mas dada a fragilidade destes – quando não comprovados por outros meios de prova – é de se rechaçar o condão de veracidade usualmente atribuídos a eles.
Optou-se pela revisão bibliográfica como metodologia de pesquisa para a realização do presente artigo científico. A promoção de estudos de artigos científico, doutrina e jurisprudência pátria foram essenciais para o desenvolvimento das ideias aqui contidas. Conhecer as nuances da aceitação da prova testemunhal ao longo dos anos no processo penal, bem como a evolução da jurisprudência e doutrina sobre o tema serviram como base para a construção e desenvolvimento do presente trabalho até a sua conclusão final.
Finalizou-se o presente trabalho acadêmico com a certeza de que a prova testemunhal recebe hoje, do nosso sistema jurídico como um todo, muito mais valor de prova do que lhe seria seguro atribuir. Dados os enormes lapsos temporais existentes entre os fatos delituosos e as colheitas dessas provas, é possível verificar a ocorrência de lacunas de memória. Além disso, como já narrado, temos de lidar com a possibilidade da implantação de falsas memórias, pela absorção de imagéticos dos mais variados meios de informação.
1.0 Da prova testemunhal
De uma forma geral, prova pode ser considerado como tudo aquilo que traz informações relevantes acerca de um fato. A finalidade da utilização de provas no âmbito processual é justamente permitir a formação de opinião sobre determinados fatos pela pessoa do julgador. Dessa forma, podemos afirmar com segurança que a utilização das provas é imprescindível para a consecução do Direito em nosso Estado.
A prova testemunhal, por seu turno, é caracterizada pela reprodução oral dos fatos ocorridos, tendo estes sido presenciados pela testemunha. Conforme visto anteriormente, a previsão legal para a utilização deste tipo de prova no âmbito do processo penal brasileiro está contida nos artigos 202 e seguintes do CPP. Analisando o aspecto histórico, podemos dizer seguramente que a prova testemunhal é uma das mais antigas e utilizadas na busca pela verdade real. O papel da testemunha no âmbito do processo é o de esclarecer a dinâmica dos fatos, podendo dar uma dimensão tempo-espacial para o juiz de como esses ocorreram, auxiliando-o assim a proferir uma sentença baseada na realidade daqueles.
A prova testemunhal é caracterizada precipuamente pela oralidade, objetividade, judicialidade, retrospectividade e individualidade. A oralidade impõe à testemunha a obrigação de reprodução oral dos fatos, não podendo-a fazer através de escritos, ressalvada a possibilidade de consultas pontuais de apontamentos. A objetividade, por seu turno, impõe à testemunha a reprodução fiel e clara dos fatos presenciados, sem que ela faça a ponderação pessoal e a emissão de juízo de valor sobre os fatos narrados. A judicialidade é a característica que determina a produção desse tipo de prova em juízo, sujeita, portanto, ao contraditório e ampla defesa. A retrospectividade impõe à testemunha a obrigação de tratar dos fatos presenciados no passado, e a individualidade determina que os depoimentos sejam colhidos de forma isolada, não podendo uma testemunha que não deu o seu depoimento ter acesso às demais que já o fizeram.
Conforme determinações legais previstas no Código de Processo Penal brasileiro, existem para as testemunhas uma série de obrigações, dentre as quais se destacam
- Dever de depor, somente podendo haver a recusa do depoimento nas estritas possibilidades previstas em Lei;
- Dever de comparecimento, surgindo para a testemunha a possibilidade da condução coercitiva para sua oitiva além da aplicação de multa;
- Dever de a dizer a verdade, respondendo a testemunha pelo crime de falso testemunho ainda que o juiz não tome o compromisso anterior de dizer a verdade antes do testemunho;
- Dever de informar a mudança de residência no prazo de até 1 (um) ano após o depoimento prestado.
Há de se notar o extenso regramento colacionado em nosso Códex Processual Penal a tratar sobre a prestação do depoimento da testemunha e todas as implicações existentes para as pessoas que cumprem esse papel perante a Justiça. Essa importância dada ao depoimento da testemunha revela parcialmente o alto valor probatório dado a esse tipo de prova no âmbito do processo penal. No entanto, conforme se verá adiante, há uma série de reticências necessárias a serem feitas no que tange à colheita e força probante do depoimento testemunhal uma vez que inexoravelmente eivado de subjetivismos e intrinsecamente ligados às opiniões e crenças pessoais daquele que presta o testemunho.
2.0 O problema da valoração da prova testemunhal Se por um lado a prova testemunhal é a mais antiga e uma das mais utilizadas em nosso sistema processual, por outro ela revela-se uma prova por demais inconsistente. Contra o valor da prova produzida de forma oral pela testemunha poderíamos citar um sem-fim de justificativas, mas há basicamente dois que são principais e se destacam nessa função: a falhabilidade das memórias das pessoas e, ainda, a possibilidade de implantação de memórias falsas. Estas duas justificativas – bastante plausíveis por sinal – merecem especial atenção no âmbito do processo penal.
Com relação à confiabilidade dada à memória das vítimas, importante tomar nota de alguns lugares-comuns da nossa sistemática processual. É de amplo conhecimento que o trâmite processual da persecução penal em nosso país costuma demorar meses – ou anos como ocorre na maioria dos casos. Se é questionável a capacidade dos seres humanos de guardarem com riqueza de detalhes fatos ocorridos de forma recente, quem dirá aqueles havidos há longos e longos meses.
Outro ponto a somar no quesito da falhabilidade da memória humana é a questão que diz respeito às percepções pessoais da testemunha pelo fato ocorrido. Cada um de nós carrega uma série de conceitos e pré-conceitos atinentes à nossa personalidade que têm impacto significativo na nossa forma de ver o mundo. A psicologia dirá que não enxergamos o mundo como ele é, mas sim através das lentes da nossa alma como nós somos. Esse filtro interpretativo do mundo molda as nossas percepções sensoriais, dentre elas a visão, tato e olfato, afetando diretamente a formação das memórias portanto. Além disso, a formação da memória não obedece fielmente à realidade dos fatos. Estamos todos superestimulados pelo ambiente à nossa volta, não detendo a capacidade físico-química para armazenar de fidedignamente todas as informações coletadas ao longo do dia por simples falta de capacidade para tal.
Antônio Damásio (2012) elucida o tema
As imagens não são armazenadas sob forma de fotografias de coisas, de acontecimentos, de palavras ou de frases. O cérebro não arquiva fotografias Polaroid de pessoas, objetos, paisagens; não armazena fitas magnéticas com música e fala; não armazena filmes de cenas de nossa vida; nem retém cartões com ‘deixas’ ou mensagens de teleprompter do tipo daquelas que ajudam os políticos a ganhar a vida.
Ivan Izquierdo explica o funcionamento da memória humana
Portanto há dois grandes grupos de memória que se podem subdividir o não. Um é o da memória de procedimentos, de atos motores o de concatenações de atos motores, como por exemplo, saber escrever à máquina, saber nadar, esse tipo de coisas. Essa memória tem uma localização cortical em parte, pelo menos inicialmente, mas depois envolve os gânglios basais e o cerebelo. É a chamada memória procedural. Conhecemos as suas vias, a sua arquitetura, digamos, mas não quem a "habita", não conhecemos muito bem como funciona. A outra é a memória declarativa, que é o que todos chamam comumente de memória. É a memória de fatos, de eventos, de sequências de fatos e eventos, de pessoas, de faces, de conceitos, de ideias, etc. Esta é memória sobre a qual mais sabemos do ponto de vista bioquímico e neuroanatômico.
As memórias declarativas se formam em primeiro lugar em uma região do lobo temporal, o hipocampo, que tem muitas fibras de conexão com o córtex entorrinal, que está localizada logo abaixo dele. Conhecemos até certo ponto a natureza dessa conexão, ou seja, a informação que irá converter-se eventualmente em memórias no hipocampo entra pelo córtex entorrinal, que recebe fibras de todas as vias sensoriais, de praticamente todo o córtex.
Quando a memória é de tipo aversivo, ou envolve emoções, um grau de alerta muito grande, ou algum grau de estresse, entram em jogo duas estruturas cerebrais adicionais: a amígdala, que está no próprio lobo temporal, perto do hipocampo, e que tem conexões bidirecionais com o mesmo; e talvez, no homem pelo menos, a região corticomedial do córtex pré-frontal, que possivelmente supre ou complementa as funções da amígdala. O hipocampo efetua uma série de processos bioquímicos que eventualmente servem para fortalecer suas conexões com outras estruturas.
Com as elucidações trazidas pelos pesquisadores, podemos certamente concluir que a formação das memórias no subconsciente humano não é um processo trivial e cartesiano como a maioria das pessoas tende a crer. Não gravamos a cena presenciada com a riqueza de detalhes e precisão de uma câmera filmadora. Pelo contrário, nossas memórias – pelo menos as maiores – estão muito mais relacionadas às emoções que sentimos ao presenciar determinados fatos que ao próprio fato presenciado em si. Restou demonstrado à exaustão a falhabilidade da memória humana, principalmente para a finalidade a que se propõe no âmbito do processo penal de ser uma forma de reconstituição dos fatos acontecidos para as partes envolvidas no âmbito da persecução penal.
Outro ponto a merecer destaque nessa discussão é a questão atinente à indução de falsas memórias por terceiros. Há importantes trabalhos e experimentos científicos coordenados pela pesquisadora Elizabeth Loftus que demonstram à exaustão a possibilidade, e até mesmo certa facilidade, com que falsas memórias podem ser implantadas nas mentes das pessoas por terceiros. Esses estudos promovidos pela pesquisadora colocam em xeque a veracidade e confiabilidade da prova testemunhal como um todo no âmbito de todo o processo penal brasileiro.
As pesquisas realizadas por Loftus baseiam-se na técnica da falsa sugestão de informação. Esta técnica se baseia na introdução de informações falsas por terceiros no meio de histórias realmente ocorridas, tornando assim consistentes e verossímeis as narrativas apresentadas aos voluntários dos estudos. A pesquisadora Elizabeth Loftus (2005) constatou com as diversas pesquisas realizadas – que contaram com a participação total de mais de 20 (vinte) mil participantes que
A informação errônea pode se imiscuir em nossas lembranças quando falamos com outras pessoas, somos interrogados de maneira evocativa ou quando uma reportagem nos mostra um evento que nós próprios vivemos.
Um dos experimentos mais marcantes de Elizabeth Loftus é conhecido como o “estudo do perdido no shopping”. Neste experimento algumas pessoas com idade entre 18 e 53 anos foram solicitadas a recordar de eventos marcantes da infância. Esses eventos teriam sido supostamente contados por familiares e pessoas próximas das cobaias aos pesquisadores, que passaram a construir uma narrativa fantasiosa sobre uma oportunidade em que esses teriam se perdido no shopping durante um passeio em família. Ocorre que tal evento nunca ocorreu de fato, e nem foi relatado por pessoas próximas às cobaias. Muito embora não tenham realmente ocorrido, após a realização do experimento, 29% dos participantes do experimente recordaram-se, ainda que parcialmente, do suposto evento que nunca aconteceu.
É notável, e perigoso, o fato da facilidade com que falsas memórias podem ser implantadas em nosso inconsciente através da simples sugestão e reforço. O experimento do “perdido no shopping” produzido pela pesquisadora revela a assombrosa possibilidade de implantação de memórias em pessoas pela simples sugestão de eventos não verdadeiramente ocorridos. Ao se imaginar a cobertura midiática dada à questões policiais, especialmente a alguns inquéritos policiais, não difícil imaginar a facilidade com que a grande mídia pode interferir até mesmo na formação de memórias e convicções das testemunhas. É de se espantar a capacidade disruptiva e todas as implicações legais ante os achados dos estudos realizados no campo da formação e implantação de memórias falsas.
CONCLUSÃO Como visto à exaustão, o processo de recordação da memória no subconsciente humano não é uma atividade trivial e simplória de ser feita. Não gravamos imagens, fatos e circunstâncias tal qual elas ocorreram, mas sim conforme uma gama de sentimentos e reações fisiológicas que sentimos ao presenciar determinados fatos e ocorrências. A formação da memória na psique humana, apesar de muito estudada, ainda não está claramente explicada pelos estudiosos.
Nesse interim, é forçoso convir, e colocar em xeque, a plausibilidade e alta valoração que se dá atualmente ao depoimento das testemunhas no âmbito do processo penal. Como visto às extensas, o processo de formação da memória no cérebro humano não é algo tão certo e trivial, o que certamente coloca em xeque a credibilidade desse tipo de prova. A própria possibilidade do induzimento de memórias, como verificado nos experimentos realizados por Elizabeth Loftus, demonstram o cuidado que se deve ter com a acreditação indiscriminada no depoimento das testemunhas do fato – ainda mais quando enorme lapso temporal decorre entre o fato narrado e a oitiva da testemunha.
Não se está, no presente trabalho, a criar uma verdadeira ojeriza à prova testemunhal. Longe disso, o objetivo do presente estudo é apenas colocar em xeque a forma como essa prova vem sendo indiscriminadamente aceita no judiciário brasileiro no âmbito das persecuções penais. Há de se ter cautela no uso enviesado do depoimento testemunhal como indicativo de prova da prática de ilícitos penais.
A título de comparação, no âmbito do Direito Civil brasileiro, que trata primordialmente de direitos disponíveis das pessoas, a prova oral produzida por uma testemunha não pode ser fundamento único de convicção do juízo. Se, no âmbito das relações privadas, onde o maior prejuízo possível às partes é tão somente financeiro, não se admite indiscriminadamente o uso da prova testemunhal como objeto de convicção do juiz, o que dirá a Justiça Criminal, donde está em risco o próprio direito à liberdade dos investigados e acusados.
Conforme dito, não se está a refutar o uso da prova testemunhal no âmbito do processo penal. Nem poderia se fazer, uma vez que na busca pela verdade real deve o juiz poder contar com todos os elementos de prova existentes. No entanto, deve o juiz corretamente ponderar o grau de confiabilidade desse tipo de prova, sopesando-o com os demais elementos de provas existentes no caderno processual.
Ao final deste trabalho, confirmamos a hipótese levantada de que a prova testemunhal tem grande valor probatório na atual conjuntura do processo penal brasileiro, valor esse não compatível com o sistema constitucional vigente. Os princípios constitucionais do
in dubio pro reo e do contraditório e ampla defesa devem servir como verdadeiros balizadores da sistemática de provas no âmbito da persecução penal. Dada a possibilidade iminente de esquecimentos, confusão entre memórias e imaginação e até mesmo a possibilidade – não tão remota – de implantação de falsas memórias, é de se reavaliar a qualidade de prova atualmente atribuída ao depoimento testemunhal.
É possível concluir com bastante clareza que a memória das pessoas não funciona de uma forma mecânica e automática, recordando os fatos e eventos acontecidos de maneira fidedigna. Se a memória pode ser falha, ou mesmo modificada, não é de bom senso dar à ela a credibilidade necessária para validar isoladamente a condenação de alguém. Estamos a falar do direito à liberdade, pilar central do nosso sistema jurídico, do qual decorrem uma série de outros direitos fundamentais de todos. Ao colocar as duas questões na balança (incerteza da memória
versus direito à liberdade do acusado) vemos claramente que ela tende à pesar mais em favor do
in dubio pro reo que à validade do depoimento prestado.
Novamente, e para clarificar bem o sentido do presente trabalho, não se está à rechaçar toda e qualquer utilização do depoimento de testemunhas no âmbito do processo penal. No entanto, é de bom tom que o juiz da causa ao valorar as provas dos autos, dê o devido peso probatório à prova testemunhal, estando essa dois degraus abaixo dos demais elementos de prova. Essa ponderação é essencial para a manutenção do
status constitucional atualmente vigente.
REFERÊNCIAS BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941.
DAMÁSIO, Antônio. O Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano, 2012. p. 128.
IZQUIERDO, Ivan. A Memória. Entrevista com Ivan Izquierdo concedida à RAN – Revista Argentina de Neurociencias.
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LOFTUS, Elizabeth. Criando falsas memórias. Artigo publicado na Scientific American em setembro de 1997.
MENNA, Fábio de Vasconcelos. “Elementos do Direito”: 6ª Edição, Editora Arx Siciliano 2007, p. 90 a 92
[1] Advogada, Doutoranda, Universidade Nacional de Mar Del Plata. Pós Doutora pelas Universidades de Salamanca e Messina (Itália). ORCID ID 0000-0002-6935-2261. Endereço eletrônico:
[email protected].